textos e fotografias de
josé manuel teixeira da silva





Penas Pesadas da Neve


diálogos imaginários de Olivier Messiaen,
prisioneiro e amante de pássaros










Duas personagens em palco. Num primeiro momento, é como se ignorassem a presença uma da outra. O Prisioneiro veste um uniforme pardo de internado num campo de prisioneiros de guerra; o Amante de Pássaros traz uma camisa larga com motivos coloridos e tem um caderninho de anotações. O aspecto de ambos revelará alguma semelhança com o de Messiaen, respectivamente nos anos quarenta e, por exemplo, sessenta, com os seus típicos óculos redondos. O palco encontra-se às escuras. Ilumina-se a personagem que está a falar, enquanto a outra fica na obscuridade, salvo indicação em contrário. O cenário é o de um espaço totalmente vazio e será ocupado, para lá da presença dos dois actores, apenas por algumas projecções (manchas de cor, silhuetas), silêncio, sons ou blocos de música de Olivier Messiaen (sequências do Quarteto para o Fim dos Tempos).




I.
(Escuridão total no palco. A luz começa aos poucos a incidir apenas na personagem Prisioneiro, à medida que se vai ouvindo o início do 3º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)


PRISIONEIRO

Penas pesadas da neve. Tanta neve, a neve não pára. (Pausa grande)

(Inicia-se a projecção de manchas em movimento, sobre um fundo acinzentado e fosco, que sugerem queda de neve; sibilar de ventania)


Há quantos dias se abate sobre este campo e nos vai cercando. Não sei se esperamos alguma coisa, os dedos do tempo estão a congelar (Esfrega as mãos com energia) . Flocos insignificantes de neve, uma poalha que se desfaz no ar, mas já nos carrega os ombros, impede que as portas se abram, nem dá para espreitarmos pelas janelas. A neve cega-nos e faz-nos olhar para dentro, é um poço. Ficam aqui perto as valas onde eles vão enterrar, daqui a meses, e aos montes, os prisioneiros soviéticos. Não estava previsto, mas acontecerá morrerem demasiados à fome e de doença. Não é um campo de extermínio, os nazis apenas depositam aqui os prisioneiros de guerra. Cá estamos, Stalag VIII A, mas o certo é que teremos valas comuns. Esta neve bate dura e sela os buracos onde tudo se mistura numa pasta informe. Vermes, e o resto, e uma neve tão branca. Cá estamos, e é como se esse buraco, a toda a hora, nos esperasse também, e a neve tão branca, tanta neve.
Não sabemos esperar, porque nos roubaram o tempo. O dia começa nos barracões de madrugada, às cinco e trinta temos de nos despachar para não perdermos a água quente. Um quarto para as sete, a parada, alinham-nos, contam-nos. Entre as colunas dos homens, fixamos os olhos nas árvores ao longe, balançam num outro tempo, como se fosse outra a sua vida. Apenas os pássaros esvoaçam também por aqui, deixam-nos cânticos que procuramos decorar, que não nos largam depois, horas e horas nos ouvidos, deixam uma alegria que não sabemos como aceitar.




AMANTE DE PÁSSAROS

(Enquanto fala- e deverá ser uma grande surpresa para o espectador- ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)


Pássaros, disseste pássaros? Interessa-me, levo os dias atrás deles…



PRISIONEIRO

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)


Os pássaros entram e saem, as suas cores parecem mais vivas na neve, a neve de novo neve fresca nos olhos. Não são para os pássaros as duas fileiras de arame farpado, as dez torres de vigia, as barracas da guarda, os abrigos dos soldados, dispostos a distâncias regulares. Há dias em que o odor das florestas em volta nos embriaga, ou ilude-nos a suavidade do ar fácil de respirar, mas há aqui um cheiro de coisa pública, coisa gasta, coisa que se morre a si mesma, segundo a segundo. Não tens um momento teu ou teu com alguém que queiras preso a ti, como se fosses tu próprio. Despejar todos os dias as latrinas, os dejectos humanos, isto é muito suave dito assim, o mijo, a merda, a merda-merda, compreendes? E a neve estendendo-se à volta como lençóis brancos onde pudesses, enfim, repousar a cabeça. Ou o cheiro nauseabundo disto no calor das tardes de verão, os prisioneiros arrancam as janelas dos barracões, mas sufoca-se na mesma. A espera até chegar ao contacto aflito da água estrangula−se a si própria, o tempo espeta pequenas farpas num corpo que desmaia. Não sabes de ti entre os uniformes iguais, as horas roubadas, a vida por entre as quarenta barracas apinhadas, de 50 por 10 metros, e uma rua central que atravessa o campo como uma cicatriz imperfeita. Quando sair daqui, vou estranhar o movimento solto das pessoas, poderem escolher esta rua ou aquela, marcarem encontros em Paris, o modo como lambem grandes gelados, as suas camisas de cores vivas e alegres.



AMANTE DE PÁSSAROS 

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, de modo a tornar bem visível a sua camisa colorida, para logo ficar de novo às escuras)

Disseste camisas de cores vivas e alegres? Gosto disso…


PRISIONEIRO

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)


Fotografias da família nas prateleiras improvisadas. Tenho saudades da minha mulher e do meu filho. Fotografias como se estivessem envolvidas numa aura, como se ali houvesse um ar à parte…



AMANTE DE PÁSSAROS

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)

Referes-te a Claire e a Pascal…


PRISIONEIRO 

(Sem se voltar para a outra personagem)


Sim, claro, como sabes? Os retratos a sépia entre os fumos das cozinhas colectivas e o cheiro do gás das desinfestações. (Com ternura e nostalgia) Pascal, como se nele eu esperasse por mim próprio, eu próprio mais eu e mais feliz. Claire, Claire, a mais clara. Lembro-me dos nossos dias na casa dos Alpes. Aí escrevi tanta música, os poemas para ela, para Mi, como lhe chamava, para o seu violino cálido e incendiado.



AMANTE DE PÁSSAROS 

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)


Também és músico? Grande coincidência…



PRISIONEIRO

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Claire vai enlouquecer depois de acabar esta guerra. Parece injusto, absurdo, não sei se o será. Como vou distinguir a felicidade passada, a saudade que me rói agora e o modo como viveremos quando ela for para o hospital psiquiátrico, daqui a uns anos? Não dizemos nunca tudo, dissemos sempre tanta coisa em silêncio ou pela música, tudo e nada compreendendo, às vezes a vida vive mais quando as palavras se atropelam, ficamos indecisos, sábios e a pensar. Assim louca, olha para o mundo, perdida, como se me devotasse os seus últimos dias nessa nova inocência, olhando para tudo pela primeira vez, longínqua, através de mim. Haverá uma mensagem secreta por trás das palavras que ninguém mais compreende, e que eu vou soletrar, muito, muito devagar, desdobrando ao contrário o caminho que a trouxe desde toda a nossa vida passada até aí, toda a nossa vida à espera exactamente de todos os seus dias, e haverá uma presença maior, uma luz central, qualquer coisa como quando olhamos uma cidade do alto e nada mais é precipitado, tudo é agora exactidão e trânsito cuidadoso. (Pausa grande)


II.
(Escuridão total no palco. Ouve-se a sequência central do 3º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)


AMANTE DE PÁSSAROS 
(A luz incide sobre a personagem, a outra mantém-se no escuro)


Penas pesadas da neve. O mundo quase não resiste à inocência de tantos pássaros, escutem a crosta dura do mundo, parece estalar como um ovo.

(Sons de múltiplos pássaros. Inicia-se a projecção de manchas coloridas, de grande riqueza de cambiantes, sugerindo desencontrados voos de aves)


Tchiu (Sinal de quem manda fazer silêncio), eles bicam o nó da sombra, trespassam o dia, volteiam de transparência em transparência. Vemos lugares que já lá estavam e não o sabíamos, porque eles sobrevoam e sobrevoam os intervalos mais discretos da terra, de toda a terra, da terra inteira.
Fico aqui à espera dia e noite (Assume a postura de quem está, ajoelhado, a sondar as árvores e a ouvir os pássaros), sob o peso do sol ou com os ossos a doer da humidade. A minha espera confunde-se com a minha vida e com a voz dos pássaros. Anoto com minúcia e dificuldade os seus cantos (Aponta para o caderno). São os maiores músicos do planeta, os pequenos servidores de uma alegria que não morre. Modéstia à parte, sou capaz de reconhecer o canto de mais de 600 espécies diferentes, em toda a França. E também no Japão, e no Irão, e na Argentina, e na Austrália, e…



PRISIONEIRO

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)


Curiosa coincidência, comecei a fazer o mesmo aos 15 anos, mas não sabia que se podia ir tão longe atrás de pássaros sempre diferentes.



AMANTE DE PÁSSAROS

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Ando nisto há anos e não sei se o mundo é todo visível, e é uma questão de paciência, ou invisível totalmente, e serão os olhos recomeçados. Ou se recomeçamos os olhos, porque vemos exactamente tudo, mas tudo, com paciência. Fico à espera para o descobrir, vivo para o descobrir, a minha vida é a espera dessa descoberta. Como músico, os pássaros ensinam-me todos os dias que há coisas de atenta surdez.
Limito-me a fazer um humilde trabalho de transposição e depois as minhas músicas a partir daí. Já percebi que sabes como é. (Desta vez olha para o escuro, onde estará a outra personagem, oculta) O coração dos pássaros tem batimentos muito rápidos e os tempos do seu canto são demasiado vivos. Para percebermos estes factos radiantes, temos de os abrandar um pouco e ao registo sobreagudo trazê-lo para algumas oitavas abaixo- e seremos em tudo isto fielmente infiéis. E o timbre cheio de harmónicos, a voz inconfundível dos pássaros? Chega a ser preciso inventar um acorde nosso para uma nota deles, e os pássaros cantam facilmente, mas as minhas músicas tornam-se difíceis de tocar. (Pausa) E um dia conheci-a. Eu tinha acabado de chegar como professor ao Conservatório de Paris, vinha exactamente de uma guerra, e ela, aluna atenta, reparava nos meus dedos sobre o piano. Estavam visivelmente marcados pela vida do campo de prisioneiros.


PRISIONEIRO

(Enquanto fala, ilumina-se brevemente a figura do actor, para logo ficar de novo às escuras)


Campo de prisioneiros, ouvi bem? Referes-te a Yvonne?



AMANTE DE PÁSSAROS

(Continua a falar, como se nada tivesse acontecido)

Ao longo dos dias que vamos viver juntos, eu e Yvonne, ela será capaz de tocar tudo o que lhe pedir, por difícil que seja, como se já o esperasse, já o adivinhasse ou pudesse dar corpo ao que eu mal formulara. Será isso o que chamam amor, uma espécie de espera iluminada, é assim com Yvonne, é ainda mais assim com uma presença que está para além de Yvonne, que dá sentido ao meu próprio amor por Yvonne. Contavam que ela tinha tocado vinte e dois dos concertos de Mozart numa só semana e apenas ficava a facilidade e a felicidade da música.

(Silêncio. Suspira, faz um gesto como se abarcasse o movimento dos pássaros em volta)

 Não sei, é como se não chegasse só uma vida para contar a plumagem, as películas esvoaçantes do breu real ou os saltos coloridos de espessuras entre galhos.






III.
(Escuridão total no palco. Ouve-se o início do 1º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)

(A luz ilumina agora as duas personagens, sentadas no solo, lado a lado. Fundo luminoso neutro)


PRISIONEIRO

E, contudo, a fronteira entre o campo de prisioneiros e a floresta encantada, era difícil defini-la. Claro, as valas, a terra de ninguém, as marchas de ritmo martelado, mas muitas vezes parecia que algo maior nos tocava o ombro, se perdíamos o olhar nas montanhas ao longe, nas copas murmurantes das árvores. Tinham outro tempo, respiravam de outro modo, como se nelas nada acontecesse se não um sopro que ainda mal começara, e em tudo houvesse uma espera que estava para lá de toda a paciência. Era então que se multiplicavam os nossos planos de fuga, olhávamos mais atentos para quem estava, como se fosse por acaso, ao nosso lado, com uma fatiota quase igual, e combinávamos pequenas artimanhas para viver melhor no campo de prisioneiros.



AMANTE DE PÁSSAROS

Sim, a música marcial, ao longe, chega também a estes trilhos da floresta e confunde−se com o canto dos pássaros, mas depois vai embora, enquanto os homens ressonam. E aqui não sabemos exactamente o que é o tempo ou o que é o espaço. Pode soar no vento, perfeitamente, uma estrofe com os velhos ritmos gregos ou uma primitiva flauta hindu, podemos inventar outros tempos, alargá-los, comprimi-los, pode ser um súbito pássaro ou uma estrela cadente. Talvez alguém, fora de todo o tempo, o tenha inventado apenas como uma alínea do mundo ou um brinquedo predilecto. E como dizer, ou escrever com precisão nas linhas de uma pauta, o que vemos e ouvimos em volta: um violeta-vermelho, um azul-laranja, ouro e verde, uma respiração de um cinzento de aço?


(Finalmente, haverá intencionalidades, entoações e gestualidades que sugerem uma situação de diálogo)



PRISIONEIRO

Podemos conceber, por exemplo, um ritmo que se construa infinitamente, perfeitamente simétrico, que possa ser lido da frente para trás…


AMANTE DE PÁSSAROS

… e de trás para a frente. Um ritmo divisível em duas vidas, cada uma delas a inversão da outra, com um tema central comum.




IV.
(Escuridão total no palco. Ouve-se o início do 6º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)
(Projecção idêntica à do início da peça: sugestão de neve e vento. As duas personagens, lado a lado, continuam iluminadas)


AMANTE DE PÁSSAROS

Penas pesadas da neve. (Pausa) Sento-me no meu banquinho de organista da igreja da Trindade, em Paris, estou lá desde 1931, lá ficarei até morrer. Às vezes incendeio o mundo com a minha música, outras vezes desacelero-o um pouco, como quando, de repente, nunca te aconteceu?, o trânsito parece parar por momentos na cidade movimentada, num súbito acaso, e surpreende-nos então o mais improvável momento. No meu banquinho, dia após dia, recriando nos sopros dos tubos os sopros do mundo, ventania maior ou sussurro mínimo; e é como se do banquinho fossem nascendo tentáculos lenhosos, que penetram as paredes potentes da igreja, passam depois aos esgotos de Paris, são agora bem visíveis, incham em Stalag VIII A. (Pausa. Palavras ditas de forma absorta) Tanta neve, a neve não pára. Há quantos dias se abate sobre este campo e nos vai cercando. Não sei se esperamos alguma coisa, os dedos do tempo estão a congelar.



(Projecção idêntica à da segunda sequência da peça: manchas coloridas, de grande riqueza de cambiantes, sugerindo múltiplos voos de aves. As duas personagens, lado a lado, continuam iluminadas)


PRISIONEIRO

Penas pesadas da neve. (Pausa) No espaço gelado da barraca 27, na noite glacial de 15 de Janeiro de 1941, estreámos em Stalag VIII A o Quarteto que escrevi para os precários instrumentos que lá havia: violino, violoncelo, clarinete e piano. Incompletos e até um pouco desafinados. Expliquei que era o Quarteto para o Fim dos Tempos e que me inspirara numa passagem do Apocalipse, e todos percebiam porquê. Nessa passagem um anjo anuncia que o tempo acabou, e todos percebiam porquê. Ouviram, num silêncio que nunca mais encontrei, os ritmos furiosos, as frases impossivelmente distendidas, olhavam às vezes para o comandante do campo e os oficiais na primeira fila. Os pássaros ajudavam a nossa libertação, cantam a abrir o primeiro andamento, entre as poeiras harmoniosas de um céu que sabemos estar por lá, sobem da voragem de um abismo um pouco mais tarde, voam para a luz que os criou. Sei que é assim, a minha música sabe que é assim, quis explicá-lo ao vivo naquele barracão de um campo da morte. (Pausa. Palavras ditas de forma absorta) O mundo quase não resiste à inocência de tantos pássaros, escutem a crosta dura do mundo, parece estalar como um ovo.


(Escuridão total. Depois, uma luz intensa encandeará os espectadores, deixando ver apenas as silhuetas bem recortadas das personagens que se aproximam uma da outra, costas com costas, como se fossem siamesas)


AMANTE DE PÁSSAROS

Sabes, estava à tua espera há muito tempo, ainda bem que chegaste, sabia que devias andar por aí.


PRISIONEIRO

Sim, sim, tens toda a razão, não diria melhor, estamos desde sempre à espera um do outro.


(A luz desvanece-se muito lentamente, ao mesmo tempo que se ouve o início do 5º andamento do Quarteto para o Fim dos Tempos)

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Penas Pesadas da Neve resultou da expansão do poema "Catálogo de Pássaros de O. Messiaen", que integra o ciclo Música de Anónimo.
Este texto dramático foi objecto de uma leitura encenada, no dia 15 de Novembro de 2010, na Universidade Católica Portuguesa, campus Foz, no Porto, pelo Centro Dramático de Viana (Castro Guedes- leitura e direcção cénica; Ricardo Simões- leitura).